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Literatura e cinema: Madame Bovary

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Certa vez, Alfred Hitchcock disse que grandes livros dão péssimos filmes; que o melhor mesmo é filmar os maus livros. Levando adiante a ironia do diretor, é lícito deduzir que “grandes livros” não geram bons filmes porque os bons livros são, sobretudo, carregados pela linguagem. A maneira que o autor conta a história é mais importante que a história em si. Nesse sentido, seria muito mais fácil produzir um filme baseado em um livro como “Harry Potter”, por exemplo, que “conta uma história”, do que em uma obra como “Grande Sertão: Veredas” em que o que há de mais importante é a própria linguagem. Para nos aprofundarmos na intersecção entre cinema e literatura, tomaremos como ilustração o romance “Madame Bovary”, escrito por Gustave Flaubert em 1856 e o filme homônimo de Chabrol. Falemos brevemente sobre o filme. A produção data de 1991 e é a sétima das oito adaptações do romance de Flaubert. O diretor Claude Chabrol (1930 – 2010) foi um dos idealizadores da  “Nouvelle Vague”, movimen...

Ermo e solidão

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Na abertura do romance Ermo e solidão da autoria de Renan Barros, o protagonista Leandro e o leitor, são lançados de chofre em um  consultório médico onde ficam sabendo que um enfisema pulmonar, ameaça a vida de Leandro. O médico adverte-o firmemente que a causa evidente está associada  a seu tabagismo. Eis o deflagrar de uma situação limite em uma existência já complicada em função de fatores como o desgaste vivido num casamento de mais de uma década, e a conturbada relação extraconjugal que ele mantém ocultamente com uma jovem bem mais nova do que ele. Tal conjuntura tem o poder de trazer à tona uma série de reflexões sobre os caminhos que ele trilhou em sua existência. Como deixou-se estar vegetando numa rotina monótona no trabalho como tradutor sem outras perspectivas profissionais? Como aquele grande amor pela esposa Marisa degenerou em relação de mera aparência, indiferença e falta de diálogo? Por quê não consegue estabelecer uma amizade íntima e amorosa com o filho Ber...

Chão de Brasas: Vias Para Penitências

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Há belos livros de poemas que lemos, num dia bom, em uma compenetrada sentada e findamos impactados pelos poemas e pelo senso do conjunto chamado obra. Há outros, no entanto, que não nos permitem tal avanço e nos detém num regime homeopático de assimilação para a digestão do seu conjunto, a que chamamos de obra. Os primeiros são aqueles muito bons. Os segundos, os excelentes. Mergulhei em um destes do segundo critério e retorno, náufrago, a trazer alguns despojos do que conseguiria tornar palavra aqui nesta crônica metidinha a resenha. Ou será o contrário? Fato é que Pés descalços sobre brasas , lançamento do editor Eduardo Lacerda, cujo aconchegante selo editorial, a Patuá, lançou na festa de 14 anos de sua existência, é obra de excelência. A autora é a poeta amapaense, Júnia Paixão, que, crescida em Belo Horizonte, habita há três décadas na encantadora Carmo da Mata, onde anualmente promove, organiza a Festa Literária de Carmo da Mata – FLICAR, que cresce por todas suas arestas, prin...

Banco vazio

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“Banco vazio” é uma coletânea de textos breves que compõem a obra de estreia na literatura do senhor Welington Souza.  O autor baiano reúne pequenos textos ficcionais que se alternam entre os gêneros da crônica, e do conto breve, agrupados em capítulos sob os títulos de “vivências”, “lembranças”, “recomeço” e “devaneios”.  Na crônica de Souza encontramos acontecimentos e reflexões da vida ali do rés-do-chão, resgatados da memória de um protagonista/autor que repassa sua trajetória de vida desde a infância pobre no interior da Bahia, até o encontro com uma maturidade existencial que lhe permite (a ele e a nós leitores), estabelecer ou ressignificar a dimensão de coisas e pessoas com quem tivemos a sina de compartilhar nossas existências. Outros textos se inclinam para o gênero do conto - ainda que de modo embrionário -, com esboços de enredos, conflitos e desfechos sempre de teor instrutivo e reflexivo. São textos muito singelos, vertidos em uma linguagem simples e coloquial, q...

Você tem fome de quê?

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Literatura é reino amplo, de topografias diversas. Cada qual com seus séquitos. Nenhum rei à vista, muitos príncipes e outros nobres postulantes a senhores da palavra. A divisão dos territórios, em gêneros, nem sempre de fronteiras claras. Zonas de conflito. Mas vale mesmo é trafegar por ele, mesmo sem mapas, sem indicações precisas. Ir pelos caminhos, descobrindo-lhes as paisagens. Encontrar outros viajantes como o talentoso Whisner Fraga que faz da palavra literária instrumento de uma geopolítica artística que não visa restringir territórios, mas ampliá-los. Alguns destes trajetos, ainda pouco sinalizados, já têm guias como ele que transcende os gêneros novos surgidos à sombra da comunicação instantânea imposta pelos meios de comunicação de massa eletrônicos e sacramentada pelas redes sociais, com mensagens medidas que cabem em postagens centimétricas, caracteres contados. Mais que isso, dizem, gera dispersão, tédio. Os bardos, menestréis e griôs adaptam-se; economizam-se; adensam-se...

Palavras para dias de chuva [& para outros dias também]

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Acaba de ser lançado pela novíssima Editora Sinete o livro de poesias “Palavras para dias de chuva”, da autoria do escritor, desenhista e compositor paulistano Rodrigo Scott. A obra em formato de bolso, 12 x 18cm é divida em cinco blocos temáticos, todos precedidos de breves epígrafes. Um livro de reduzida extensão é certo (88 páginas), mas que apresenta peculiaridades que a tornam maior pelas implicações decorrentes da leitura atenta dos poemas. A começar pelas belas ilustrações produzidas pelo autor e que, em boa medida, se entrelaçam às temáticas abordadas. Outro ponto que merece destaque é o próprio título do livro. “Palavras para dias de chuva”, que remete a certo sentimento de que tais dias são mais propensos à reflexão porque despertam saudade, nostalgia, e  proporcionam momentos de tranquilidade e reflexão. Entretanto, Rodrigo Scott vai mais além.    Em nota introdutória, o autor pontua que os poemas foram agrupados em temas que se relacionam. “Na parte 1, por exe...

“Cicatrizes” no corpo e na alma

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Como todos os dossiês que a revista Cult tem publicado, o do pensador negro norte-americano William Edward Burghardt Du Bois (1868-1963), que ocupa mais da metade da edição de fevereiro de 2025, é um rico e substancial painel da vida e obra do autor contemplado. No texto de abertura, “Redescobrir W. E. B. Du Bois”, Matheus Gato relaciona “temas candentes no debate contemporâneo na esfera pública e nas universidades” presentes na obra do sociólogo e historiador, com “suas formulações mais originais e pioneiras”. Alguns desses temas: branquitude, capitalismo racial, cultura, identidade, imperialismo, colonialismo, racismo, democracia, pós-abolição, pan-africanismo e literatura negra.  Tudo isso aparece também em Cicatrizes (Balaio, 2023), sexto livro do poeta baiano Carlos Machado (Muritiba, 1951). Sim, o livro abarca todos os temas de Du Bois e outros, mais ligados à história do Brasil. Até porque, “não diferem o historiador e o poeta, por escreverem em verso ou prosa (pois que be...