Postagens

W. J. Solha: autobiografia sem anistia

Imagem
Ernest Hemingway (1899-1961) escreveu há 90 anos numa resenha do primeiro romance de John O’Hara (1905-1970): “Se você quer ler um livro de um homem que sabe exatamente sobre o que está escrevendo e o escreveu maravilhosamente bem, leia   Encontro em Samarra ”. Quase um século depois, pode-se dizer isso também sobre a autobiografia de Waldemar José Solha (Sorocaba, SP, 1941; vive em João Pessoa). Sob vários aspectos, W. J. Solha, como assina sua obra, é um fenômeno. Com a publicação da   Autob/i/ografia   (Arribaçã Editora), o leitor brasileiro agora pode saber o quão ricas e fascinantes são a vida e a obra desse artista de múltiplos talentos e prêmios. Poeta, romancista, contista, dramaturgo, letrista, artista plástico, pintor e ator. Ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante do Festival de Cinema de Porto Alegre, em 2013, pela atuação em   O som ao redor , de Kleber Mendonça Filho.  Como escritor, conquistou diversos prêmios, entre eles o Fernando Chinaglia, ...

O tamanho da fome

Imagem
Que está na romaria dos mutilados Que está na fantasia dos infelizes Que está no dia a dia das meretrizes No plano dos bandidos, dos desvalidos Em todos os sentidos O que será (Chico Buarque) “Você tem fome de quê?” perguntam os Titãs na já clássica canção pop Comida , lançada em 1987. E respondem: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. Se você tem fome de boa literatura, tenho um prato cheio para lhe oferecer: As fomes inaugurais  (Sinete, 2024), do escritor Whisner Fraga, é um verdadeiro banquete para quem aprecia um bom texto literário. O volume reúne pouco mais de cinquenta pequenos contos que flutuam sobre um mesmo tema: os desvalidos, os invisíveis, os à margem de tudo, os famintos de todo tipo de alimento, para o corpo e para o espírito. Como fragmentos de uma realidade cruel, as pequenas narrativas funcionam como flagrantes trágicos de indivíduos desprezados pela sociedade, mendigos, sem tetos, prostitutas, sujeitos a todas as formas possíveis ...

Caixa de vazios

Imagem
A recente publicação de Caixa de vazios  - poesias, da autoria do escritor mineiro (de Uberaba), Vicente Humberto, pela editora Ficções, suscita uma curiosidade oriunda de ideias antagônicas: uma caixa cheia de vazios? Ou uma caixa vazia? Temos portanto já no título, o sentido conotativo (associação subjetiva), além do sentido literal que se poderia esperar. Mas não é isso mesmo que a literatura opera com a linguagem?  Esta que é talvez, a nossa mais cara invenção? Indispensável e bela, a linguagem, entretanto, nunca é estática e absoluta, sempre fluida, sempre múltipla e viva como pássaros em voo. Assim, curiosos, retiramos a tampa dessa caixa de Vicente Humberto pensando de antemão que encontraremos a linguagem revelação de mundos, recriação de mundos. Três compartimentos ou seções dividem a obra:  “Uma árvore quase pronta”, “Fazenda Harmonia” e “Sombra feliz”, a reunir ao todo, 96 poemas. O autor que também é engenheiro de formação constrói uma obra marcada pela simpli...

A poética da ausência

Imagem
A coletânea de contos De repente nenhum som , de Bruno Inácio, publicada pela Sabiá Livros, em 2024, traz o silêncio como protagonista das doze narrativas, apresentadas em pouco mais de cem páginas. O leitor não se engane: trata-se de uma obra densa, de múltiplos contornos, interpretações, em que a ausência de som é um elemento crucial para a caracterização das personagens e para a própria construção das tramas. As ficções carregam um lirismo profundo, que utiliza diversas ferramentas para ilustrar os fluxos de consciência, os discursos fragmentados, bem como diversos estilos de composição. O silêncio, nestes minicontos de Bruno Inácio, são uma forma de representação ortográfica, eles mostram não a falta de comunicação, mas uma maneira distinta de expressar experiências e compartilhar sentimentos. Por meio de situações corriqueiras, de interações humanas, o livro aborda assuntos como a família, a perda, a finitude, o amor e, acima de tudo, a busca por significados, por algo que justifi...

“Prisão, flores e luar”: mergulho em busca do eu

Imagem
A personagem-narradora do romance de Carla Dias desfia uma série de inquietações, nunca contradições pessoais mesquinhas, mas profundas, angustiosas – e que libertam Poesia se faz apenas com palavras? A uma consulta de um poeta de 24 anos, no “Correio” do semanário Zycie Literackie (Vida Literária), a polonesa Prêmio Nobel Wislawa Szymborsksa (1923-2012) respondeu assim: “Não tente ser poético a qualquer preço: a poeticidade é chata, porque é sempre secundária. A poesia, como, aliás, toda a literatura, retira suas forças vitais do mundo em que vivemos, das vivências realmente vividas, das experiências realmente sofridas e dos pensamentos que nós mesmos pensamos. É preciso descrever o mundo continuamente, porque, afinal, ele não é o mesmo de tempos atrás”. [ Correio literário ou como se tornar (ou não) um escritor , tradução de Eneida Favre, Belo Horizonte, Editora Âyiné, 2024, p. 37]. No recente Prisão, flores e luar (Sinete, 2024), Carla Dias [Santo André, 1970; vive em São Paulo] ...

A marcha sensorial rumo à liberdade

Imagem
Amores terás vivido , o mais recente romance de Wilson Loria, publicado pela Editora Patuá, em 2024, narra a história de Nelson, um jovem que deixa Cuba e se muda para os Estados Unidos, no início da revolução cubana. O leitor acompanha a jornada do protagonista, desde a fuga até as experiências no novo país, explorando temas como liberdade, paixão e busca pela identidade. A opressão política e social, o desconforto com as mudanças na ilha, o medo da repressão e, principalmente, um profundo desejo por liberdade sexual, são fatores que impulsionam essa partida. A família de Nelson desempenha papel fundamental em toda a obra. O pai é o responsável pela compra das passagens, a mãe o suporte emocional, o amor incondicional, os irmãos como símbolos da relação entre passado e presente. A lembrança dos entes queridos, que permanece em Cuba, é muito presente no romance, e simbolizada por cartas recebidas, que dão, ao leitor, um panorama do contexto cubano da época.  Os Estados Unidos, país...

"A felicidade é um inferno" | Amor e solidão nos contos de Jussara de Queiroz

Imagem
Nos anos 1970, auge do conto no Brasil, o estado de Minas Gerais chegou a ser chamado de terra do conto. Com justiça. Autores já consagrados anteriores àquela época passaram a ser mais conhecidos e lidos, entre eles Murilo Rubião, Luiz Vilela e Sérgio Sant’Anna. Sem falar em mestres de anos anteriores, como Aníbal Machado e Guimarães Rosa. Na década de 1970, incontáveis ótimos contistas foram revelados em Minas. Hoje o conto não tem mais tanto espaço na mídia nem nas editoras. Uma pena. Mas o gênero segue em alta entre escritores do país inteiro.  Minas continua solar de excelentes contistas, de variadas gerações. Um exemplo expressivo e recente é Jussara de Queiroz (Patrocínio, 1953; vive em Belo Horizonte), autora de A felicidade é um inferno (Nauta, 2024), que traz contos primorosos no enredo, na linguagem e na estrutura. Ela não é escritora estreante. Em 1994, Jussara publicou o romance Voo Rasante (Editora O Lutador), Prêmio BDMG Cultural de Literatura de 1992. É autora vence...