Certos casais - as variantes da intimidade
Certos casais (Laranja Original, 2021) é uma coletânea de contos, dividida em duas
partes. O Livro I contém oito narrativas e o Livro II, apenas uma. Logo nas
primeiras páginas notamos a influência de Dalton Trevisan – frases rápidas,
curtas, flashes, que mais insinuam do que revelam. Claro que um autor do porte
de Almeida não tem apenas uma influência, mas é a mais óbvia para o leitor. Ao
mesmo tempo, as palavras são encadeadas de modo a favorecer a musicalidade, a
poética, o lirismo.
Hugo é um escritor refinado, de maneira que é preciso mantermos
a atenção ao que escreve, isso nos é exigido claramente. Nada mais justo do que
dedicarmos nosso tempo a uma obra de arte, que certamente levou tempo para ser
elaborada. Percebemos um trabalho apurado para conciliar forma e conteúdo e isso
é raro em um escritor.
O primeiro conto, “O sono do vulcão”, é uma paulada. Já a
primeira frase nos causa espanto: “Deus fez o mundo à toa?”, provoca o
narrador. Pronto, já basta para ficarmos presos à trama. Numa narrativa curta,
as primeiras frases são fundamentais, é ali que decidimos se continuamos a
leitura ou não. Almeida sabe muito bem disso e domina a arte das histórias
breves. Nesta narrativa, o professor Gilberto está casado, há um tempo razoável,
com Tâmara. Como o título sugere, o desejo está inativo (não extinto). É real,
portanto, a possibilidade de que um dia venha a apresentar algum tipo de operação.
Gilberto parece fantasiar que massageia os pés de uma jovem e atraente companheira de
viagem. É impressionante a construção da trama – tudo atua num limite entre a
fantasia e a realidade, ou, de outro modo, a fantasia como suporte da
realidade. Nós temos a visão de Gilberto sobre os fatos. Uma perspectiva
evidentemente distorcida, parcial. É esta névoa que nos envolve: acreditamos? Duvidamos?
Qual a interseção entre realidade e ficção? O quanto o narrador se afasta do
autor?
O segundo conto, intitulado “Outra vida para dona Olímpia”,
é tão bom quanto o primeiro. Nele, o autor narra o feriado de Olímpia em Diamantina. É Semana Santa. Esta senhora, recém-viúva, vai para Minas Gerais, porque a nora sugere o passeio. Alguns personagens de “O sono do vulcão” ressurgem, mas não são o
foco da nova história. Olímpia observa o padre ministrar o sacramento da
confissão a fieis e vê tudo com um olhar crítico. Aos poucos vamos descobrindo
mais sobre a vida da mulher. Há intervenções contínuas dos narradores e são
explicitadas por parênteses. Aliás, é muito interessante o casamento também de
elementos gráficos com a narrativa – parênteses, letras menores quando acontece
algum sussurro, e assim por diante. Essas ousadias gráficas convivem em
harmonia com um texto concebido e executado em cada detalhe.
Nos próximos contos vamos conhecendo um pouco mais das
famílias de Gilberto e de Tâmara, dos filhos do casal, dos pais do casal: nos são
apresentadas outras perspectivas sobre os mesmos fatos. Desde Mil corações
solitários (e talvez até antes), Almeida conduz um projeto literário e, nele,
está clara essa ideia das múltiplas vozes. Em “Fogo baixo, labareda”, última
narrativa desta primeira parte, conhecemos as opiniões de Tâmara acerca dos
eventos do primeiro conto. Tudo nos é, de certo modo, esclarecido e chegamos a
aceitar como verdadeira (ou plausível?) esta última interpretação. Nós,
leitores, tomamos inevitavelmente um lado, esta é a grande armadilha da obra e
só um mestre poderia nos levar até este ponto.
As frases nem sempre estão completas, como na oralidade. Nós
temos de extrair delas o significado faltante, temos de ser parte da construção
de interpretações. Nós somos o interlocutor explícito, que preenche lacunas.
Sonhos, desejos, ilusões, mentiras, fantasias se mesclando à realidade, tudo
servindo a uma versão mais bonita dos fatos, como se todos os personagens
estivessem em uma rede social e quisessem mostrar um mundo de devaneios, uma
miragem, uma alucinação.
No segundo livro, continuando com este tema de casais e
relacionamentos, está a história dos Curie, Marie e Pierre, igualmente romanceada. A vida em
comum dos dois nos é apresentada de maneira idealizada, fugindo um pouco ao que
aconteceu, segundo biografias publicadas, dando um verniz de idealismo e de sonhos,
nos lembrando que mesmo a história pode ser (re)interpretada segundo um tempo e
uma cultura. Sem citar que o objetivo da ficção é um tanto diverso.
Hugo Almeida resgata alguns personagens e temas de Mil
corações solitários, trazendo-os a este novo livro. Isso nos mostra algo
importante, ao que devemos, como leitores, estar sempre atentos: o grande
escritor tem um projeto literário - a obsessão desfila sempre nas obras de um
bom ficcionista. Não é apenas o estilo, é uma concepção, é um programa.
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