Sacrifício e outros contos – as afeições submersas
Por Whisner Fraga
Francisco de Morais Mendes (1956) é um
escritor e jornalista mineiro, mestre em literatura brasileira, autor dos livros
Escreva, querida (Mazza Edições, 1996), vencedor dos prêmios Cidade de
Belo Horizonte e Minas de Cultura, A razão selvagem (Ciência do
Acidente, 2003) e Onde terminam os dias (7letras, 2011). Publicou contos
no Rascunho, Suplemento Literário de Minas Gerais e em diversas antologias pelo
país.
Estas narrativas de Sacrifício e outros contos (Jaguatirica, 2021) foram
premiadas em Portugal e publicadas lá pela Gato Bravo, em 2019.
Trata-se de um escritor completo, que merece o
reconhecimento dos leitores brasileiros. É um contista em pleno controle das
técnicas da narrativa curta, valoriza todos os ingredientes necessários para
uma boa prosa: linguagem refinada, sem nenhum excesso, personagens
interessantes, muito bem arquitetados, tramas provocantes, que capturam o
leitor com reviravoltas e suspenses.
O livro Sacrifício e outros contos é composto por 10
contos, que ilustram de forma clara essa competência para escrever boas
histórias. São narrativas que tratam do cotidiano, infectado por absurdos que
beiram o realismo mágico. Francisco de Morais Mendes se aproveita das
histórias dos personagens para homenagear livros e leitores, usando de
referências que se encaixam de forma natural ao que é contado. Não há, nestes
tributos, nenhum tipo de pedantismo, ao contrário, pois se amoldam tão bem à
trama que passam a ser agradáveis. O leitor não se oporá a esta aprendizagem.
O primeiro conto traz um escritor que se aproveita da
influência do realismo mágico para dar à trama um timbre de suspense e de
elegância. Intitulada “Sacrifício”, esta narrativa em terceira pessoa fala de Marcial,
um homem de sorte, como aventam, que vive de encontrar dinheiro nas ruas. Ele
consegue um emprego em um sebo, para, assim, encobrir os ganhos com a
atividade, talvez, criminosa. Mesmo dividido em 25 partes, o texto é enxuto, não
há adjetivações em exagero, os diálogos são precisos, incisivos e
imprescindíveis.
O segundo conto, “Jogo de cartas” é um mistério, uma
narrativa de incertezas. É ideal para o leitor curioso, que gosta de um bom
desafio. É a história de um crime, isso está explícito logo nas primeiras
linhas. Quem foi preso? Quem morreu? Quem está rindo ironicamente de todos? Cordeiro
é um empresário grã-fino, que contrata o poeta Carlos Jacinto para escrever
cartas eróticas. O ricaço deseja presentear a esposa, Karenina, fã dos versos
do vate, com estas cartas. Este preâmbulo desaguará em um enigmático triângulo
amoroso e é desta geometria sentimental que surgirão os delitos.
O terceiro conto, “Quinta-feira, 17, por volta das 18 horas,
com chuva” se passa em Barcelona e, lá, Henrique procura o escritor Enrique
Vila-Matas, com quem deseja confabular acerca de um certo personagem. É uma
história de duplos. Trata da impossibilidade de Henrique ir à procura de
Enrique, o que faz com que se inicie uma interessante troca de corpos. O dito
“coloque-se no lugar do outro” é levado ao extremo pelos personagens. É a única
forma que Henrique encontrou de deixar o lugar que se encontra e ser,
verdadeiramente, outro, como quer, talvez desde o princípio. É uma interessante
brincadeira sobre o papel do leitor na construção de sentidos para uma
história.
As demais narrativas versam sobre diversos temas. A
continuidade – um artista produz uma arte para durar? Ela vai durar? De quem
esta durabilidade depende? Uma peça de teatro em que uma grande atriz fica
lendo um texto diante da plateia – a descrição minuciosa da leitura é
maravilhosa, uma garota de programa que fica amiga de um solitário, um
desconhecido que chega a um velório e se diz amigo do morto, uma aula sobre
autoficção.
Por fim, o último conto, “Sugestões para começo, meio e
fim”. Nele, estão trinta propostas de histórias, que o leitor pode preencher conforme
lhe aprouver. Novamente o autor traz para o seio de sua obra as construções
advindas do relacionamento entre obra e leitor, ou, em última instância, entre
narrador e leitor. São, da mesma forma, trinta minicontos, já que cada um pode
conter uma trama completa. A numeração desordenada das peças induz que não
existe uma ordem nas coisas, que tudo ocorre ao acaso, como um pensamento que vaga
por diversas situações, diversos livros, diversas histórias. É a síntese desta
obra, um quebra-cabeças que exige ser montado pelo leitor. Todos os dez contos
deste livro são muito bem escritos. Francisco de Morais Mendes consegue
manter a qualidade até o último conto, não há altos e baixos na obra.
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