Não me empurre para os perdidos – polifonia a serviço da trama
Por Whisner Fraga
Maurício Melo Júnior (1961) é um escritor,
jornalista, crítico literário e documentarista pernambucano, conhecido por
apresentar o programa Leituras, da TV Senado. É autor de, entre
outros, A revolta dos cascudos (Bagaço, 1992), O palhaço que perdeu o
riso (Bagaço, 1993), A cidade encantada de Jericoacoara (Bagaço,
1995), É doce viver no mar (Bagaço, 2008), Viva o cordão encarnado! Viva o cordão azul! (Bagaço,2012), Noites
simultâneas (Bagaço, 2017).
Não me empurre para os perdidos (CEPE, 2020) foi
finalista do Prêmio SESC de Literatura, em 2017.
Este romance tem quatro eixos narrativos ou quatro vozes
distintas. Max, a primeira, dialoga com um escritor, de quem recebe um pacote,
assinado por F. Nesta encomenda se encontra um caderno pautado, em cuja capa está
escrito somente 1924, o ano em que se passa a história. Ali estão um diário de
F. e uma novela, um folhetim chamado “Dois soldados e uma guerra”.
Nesta novela dentro de um romance, um rei divide seu
reino em três partes, sendo que fica com uma e dá as outras duas aos dois
filhos, tentando evitar brigas futuras. É claro que isso não acontece e, assim
que o pai morre, um dos irmãos reclama para si todo o império. Tem início então
uma guerra.
O tema principal de Kafka é retratado nesta ficção, o
conflito familiar, principalmente entre pai e filho. Estão presentes também a
alienação, as missões absurdas, a redenção, e o próprio estilo de Kafka é
emulado. É uma narrativa engajada, um manifesto de censura à guerra, mas
escrito com elegância, segundo os preceitos literários e se encaixa
perfeitamente no contexto deste “Não me empurre para os perdidos”.
F. está em Recife, onde trabalha como tradutor do alemão
para o português em uma empresa de importação e exportação. Durante 9 dias ele
convive com intelectuais , em Recife: Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Joaquim
Cardoso, Joaquim Inojosa. Durante longas e calorosas discussões, apresenta uma visão
europeia sobre a literatura, sobre o modernismo e sobre a arte, em geral. O
leitor poderá perceber que há um modernismo pernambucano em contraponto ao
modernismo paulista e mesmo ao modernismo europeu. Algo inédito, grandioso,
estava sendo gestado pelos brasileiros, com a ajuda do estrangeiro.
O grupo de pensadores é coeso desde o início, como se não
houvesse se formado há tão pouco tempo e este recurso dá um tom onírico à trama
e convida o leitor a relacionar F. com Franz Kafka. Apenas o sobrenatural para
justificar esse encontro improvável, essa harmonia inimaginável, dadas as
diferenças culturais e mesmo conceituais dos integrantes do que o leitor pode
imaginar ser um movimento, obviamente em contraponto àquele da semana de 1922.
Biógrafos de Kafka defendem que, logo após a morte, em 1924,
o corpo do escritor tcheco levou nove dias para chegar a seu destino final. E
se ele tivesse despachado um pacote antes de falecer, contendo um diário e uma
novela? E se, em uma jogada surreal, não houvesse falecimento nenhum e ele, na
verdade, tivesse vindo para Pernambuco dar uma ajuda a uma turma que não
aceitava a hegemonia de pensamento gestada no sudeste? O autor usa todos estes
dados para construir um personagem interessante, um fantasma de Franz Kafka que
só quer continuar vivendo por meio de seu amor à literatura.
A preocupação de Maurício Melo Júnior com a construção dos
personagens é uma lição para escritores e críticos. Exemplo disso é o
protagonista desta obra: F. é um autor que escreve em alemão, mas procura
dominar a língua portuguesa, lendo os clássicos de nossa literatura. Só assim
ele próprio poderá arriscar a produzir algo válido em um novo idioma.
Este exame de alguém de fora, que testemunhou o modernismo
na Europa, com a capacidade, portanto, de opinar sobre este nosso pensamento, é
fundamental para as incursões sobre a função social da arte, sem o compromisso
de se chegar a qualquer conclusão definitiva. Na Europa, a polêmica andava
muito à frente e versava sobre a arte politicamente engajada. A literatura, na
esteira deste pensamento, deveria cuidar de temas do momento e o escritor com a
obrigação de se posicionar. Não há grandes problemas nesta abordagem, desde que
o resultado final fosse uma composição artística e não um panfleto edificante e
vazio. No romance de Maurício Melo Júnior, Gilberto Freyre defende que a arte
deve ser a prioridade do artista, seja engajada ou não.
Ao final, o leitor se deparará com um último narrador, onipresente,
que fecha o livro, elucidando pontos que ficaram abertos. Neste ponto, é
importante ressaltar o trabalho impecável na construção destas diferentes
vozes, que jamais se confundem. O autor soube criar com sucesso um tom para
cada narrador, tarefa nada trivial.
Outros destaques da obra são os diálogos, os pontos de vista
sobre o fazer literário, sobre a utilidade da arte, sobre as responsabilidades
do artista. O romance é muito bem construído, amarrado, nada fica para trás,
não há excessos nem economias.
Maurício Melo Júnior mostra um pleno domínio da arte e
oferece ao leitor um romance polifônico, que privilegia não apenas uma trama
bem urdida, mas também a linguagem, transgressora e precisa.
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