Porco de raça – uma distopia brasileira
Por Whisner Fraga
Bruno Ribeiro (1989) é um escritor, tradutor e
roteirista mineiro. Atualmente vive em Campina Grande, Paraíba. Ele é autor dos
livros Arranhando paredes (Bartlebee,
2014), Febre de enxofre (Penalux, 2016), Glitter (Moinhos, 2018),
Zumbis (Enclave, 2019), Bartolomeu (Ed. Do Autor, 2019), Como
usar um pesadelo (Caos & Letras, 2020) e Porco de raça
(DarkSide, 2021). Em 2018 foi finalista do I Prêmio Kindle de Literatura, em 2020
venceu o primeiro prêmio Todavia de não Ficção com um livro reportagem e o
primeiro prêmio Machado DarkSide.
Esta edição do romance Porco de raça conta com as
ilustrações de Vagner Willian.
O narrador do livro é um professor paraibano
desempregado, negro, sem dinheiro e seriamente encrencado, pois deve para muita
gente. O irmão é um poderoso senador e o acolhe sempre que está com
problema, embora essa hospitalidade não seja gratuita. É nítido que há uma certa
obrigação por conta dos laços de sangue, há um preço e, também, muita tensão. A
primeira parte do livro é vertiginosa, o protagonista sofre diversas
violências, tanto físicas quanto psicológicas, é capturado várias vezes por
grupos, que parecem se conectar de alguma maneira.
Logo nas primeiras páginas, o leitor vai se deparar com sequestros,
uma possessão demoníaca, pedofilia, prostituição e outras agressões. É
tudo caótico e propositalmente improvável. Um exemplo dessa inverossimilhança é
uma passagem em que a polícia encontra o narrador, aos farrapos, tarde da
noite, em um local deserto e ainda sim o trata bem. E no Brasil! Inacreditável,
não? É o tipo de fenômeno com que o leitor se depara com frequência, na obra.
Para dar um tom de descompasso, de deslocamento, um agente
exuma e ressuscita, pouco depois, um gafanhoto gigante. É esse toque onírico
que dá a tônica do romance. Mais uma vez, o estranhamento é nitidamente
proposital na obra. O objetivo é deixar o leitor incomodado, atento, deslocado,
em uma realidade distópica. O delírio é fundamental para que o leitor se
pergunte: o que é verdade e o que é invenção da cabeça do narrador?
Para finalizar esta primeira parte, o herói deste romance é
sequestrado e levado para Buenos Aires, onde se tornará um lutador de luta
livre, o Porco Sucio, num torneio intitulado Zoo Fighters. Uma
diversão para endinheirados do mundo todo, que finda por ir para a TV aberta e
se tornar, em pouco tempo, um fenômeno da mídia.
É importante ressaltar aqui, que a falta de explicação, de
justificativa, em determinadas passagens, acaba atrapalhando o conjunto. O foco
da trama é claramente a transformação do professor em um gladiador impiedoso.
As passagens iniciais, os primeiros sequestros, ficam deslocados, por mais que
se queira dar uma ideia de união entre os eventos.
A segunda parte é uma biografia do protagonista. Aqui, Bruno
Ribeiro trata, com muita competência, de temas que são caros à sua
obra: o racismo, o colorismo, outros preconceitos. Porco
Sucio inicialmente não se aceita como negro, ele se vê mulato, como está descrito
no romance. Ele percebe o pai, a mãe e o irmão se renderem às regras ditadas
pelos brancos: só assim, eles imaginam, terão sucesso e, realmente, são
bem-sucedidos, mas não para o narrador, que os vê como vendidos. Quando ele
assume a negritude, após tentativas malsucedidas de se encaixar no modelo da
sociedade, tudo muda e, aparentemente, para pior. Porco não consegue
lidar com os enormes traumas que uma vida de bullying, intolerância e outras
violências causaram a ele e se sente invisível em uma sociedade que não o
respeita.
A terceira parte é a coroação da paranoia e do delírio.
O narrador se torna, por méritos próprios, um sucesso e começa a gostar disso. Ele
se sente, pela primeira vez, valorizado, alguém, um ídolo, e usa, com orgulho,
uma máscara de suíno, que não pode ser tirada em hipótese nenhuma durante a
luta. Claro que tudo é ilusão. Ele quer transgredir ali também, sua vida
é desobedecer, é o que faz de melhor. Não basta a violência extrema com que
trata os oponentes, é preciso mais. A partir deste ponto, a trama se torna
completamente turva, o leitor nunca sabe se o que está lendo é verdade ou
invenção de Porco. Isso é uma forma bem interessante de se contar uma
história.
A denúncia do racismo estrutural é contundente, a sociedade
é responsabilizada pelo destino dos negros. Todas as lutas do protagonista são
contra o racismo, é o preconceito que ele quer derrotar com murros, pontapés e,
se possível, outros golpes. Mas, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, Porco
é machista. De forma proposital, ele acaba com a vida da companheira, Wênia,
que sofre o que pode e o que não pode ao lado dele. Ele também se diverte com
prostitutas, enquanto está preso em Buenos Aires, em seu novo trabalho. No
fundo, à parte toda violência que sofreu, é um representante de uma sociedade
patriarcal. Ele abomina as amantes do pai, mas cai numa armadilha ainda pior.
O romance é linear, escrito de maneira crua, sem rodeios, no
formato clássico do gênero. Ainda assim, o que Bruno Ribeiro está
fazendo na literatura brasileira é inédito – algo parecido foi feito lá fora,
por Octavia E. Butler: trazer questões da negritude para estilos literários
dominados por brancos. Isso é necessário e só isso já faria dele um dos escritores
mais interessantes dessa nova geração. É claro que o talento de Bruno é ainda
maior – ele sabe escrever com estilo, sabe contar uma história, sabe prender o
leitor, tem uma forma de narrar bem peculiar, com frases de efeito, diálogos
bem construídos, uma ironia refinada e elegante.
Recomendo.
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