Carta de um leitor
São Paulo, 25 de fevereiro de 2022.
Caro
Whisner,
O que logo chama a atenção, em todos os seus contos de O que devíamos ter feito, é o estilo
peculiar, singular, a orginalíssima dicção literária, a poesia que atravessa o
livro inteiro (tudo “sofisticado”, com “arsenal metafórico e simbólico”, como
diz Jamil Snege no prefácio), episódios muitas vezes cruéis (“espécie de cadeia
de explosões”), histórias marcadas quase todas pela incerteza dos narradores e
personagens, pela indecisão, pelo medo, tudo reflexo da vida perversa atual. Um
trabalho primoroso.
Também a estrutura do livro (a sequência dos textos) está
muito bem organizada, quase circular, início e fim com as dores da pandemia, a
interlocução com a companheira Helena do narrador, entremeada com narrativas em
que ela não é citada, um certo intervalo que traz outro tom, ainda bem pessoal,
ao texto.
São incontáveis as analogias e metáforas e outras figuras de
linguagem e achados literários bastante originais. Cito apenas algumas. Do
primeiro conto (primoroso, de final perfeito): “uma certa perplexidade
camuflada na pupila”; “as sirenes chegam para classificar e organizar a
tragédia”; “aflição da obediência”; “o que fez com as frases que é obrigada a
emudecer?”, “arbítrios de algo superior, onipotente, onipresente, onitudo” (no
meu romance inédito, uma personagem idosa diz ter dor-ni-tudo); “a obediência doma sua garganta”; “a rodovia
imaculada: eles conseguem higienizar tudo: até a memória”.
Em “Ambição”: “diversas texturas de pastos... brancos de
herbicidas desautorizados”; “confisca uma colher de madeira e a veste com a
boca”; “os queixos tombados parecem inquirir [...] as mãos em concha sobre as
bocas”; “a responsabilidade esmagando um resto de infância”; “a ordem é uma
rasteira...”; “o goleiro desembesta rumo ao desespero [...] avança”; “a rede
engravidando uma vitória doída”; “o tempo de deus é diferente do nosso”; “a
bola se aninha na sua chuteira” – você usa com propriedade parênteses e
colchetes, como fez o Sílvio Fiorani no belo romance O evangelho segundo Judas {[ele morreu em 16 de dezembro do ano
passado, você soube?], ninguém deu nada – mandei no dia um e-mail para o
Estadão, não houve eco; no Wikipédia, o Sílvio continua vivo [“Silvio Fiorani
(Vista Alegre do Alto, 1943) é um jornalista e escritor brasileiro...”), mais
de dois meses após a partida. Triste Brasil!]}. Nesse conto “Ambição”,
fortíssimo, você desmascara os bastidores do submundo do futebol,
principalmente na seleção de novos jogadores, as chamadas peneiras.
No doloroso e poético “Jardim provisório”, um tsunami de angústias
e dores, as inúmeras figuras nos tiram a respiração: “a noite, helena, a noite,
já se sabe, é uma tinta espessa vedando o fluxo da esperança [...], ela ainda é
alguma coisa contra a angústia”; “a febre rascunhou a sua fúria em meu rosto”;
“todo esse armamento de recordações se tornara opressão”; “deve ter havido o
medo, pacato inquilino de nossa biografia”; “do temor bifurcam outros
subprodutos”.
De “Caçada”, outro conto magnífico, talvez o melhor de todos:
“um homem desce e está emprestado à escuridão”; “eu me tornara um homem,
conseguia alimento para o lar”; “perdemos o controle de algo, tudo isso era
ruim, helena, era fermento para a covardia”; “a esperança, helena, é um complô
de desejos” [isso é mais do que ótimo, Whisner]; “o perfume desolador do
orvalho apunhalando o chão”; {há de se destacar passagens cinematográficas
nesse conto. Exemplo: quase toda a página 72 e a 73, a partir de “sigo-o”, e
também na 74. E que final, rapaz! Aberto, morreu ou não? Parece que sim, mas
não se pode travar certeza. Coisa de grande escritor que você é.
“Sopro”, um texto de dolorosa poesia, com destaque para o
segundo parágrafo da página 78. E que beleza doída isto na 79: “a catastrófica
realidade é liquidada por aquele outro céu [...] rareado depois das
quimioterapias...”. E mais (a pungente simplicidade): “eu abraço meu amigo[...]
novamente perto de mim”. Ainda: “ele ouve a canção novamente, triste,
indecente, ele toca para ela, para a morte que o saúda do horizonte...” E o
último parágrafo, meu caro Whisner, é um fecho de mestre. Releia lá.
Se me permite, faço alguma restrição a “Amizades”. Parece-me
dispensável a “advertência”; o conto poderia começar no segmento 1. Na página
89, não seria “soubesse” em vez de “sabia”? (Sexta linha de baixo para cima.)
Mas não deixa de ser um ótimo conto. Há frases à altura de outros textos do
livro: “você desliga o telefone e o mantém suspenso, como um apêndice
inconveniente”, ótima imagem para uma história em hospital, tão bem retratado
no início do capítulo 4 e na página seguinte, a falta de humanidade ali (“não
deviam ter uma disciplina sobre isso na infindável grade da graduação?”.
Complemento: nos cursos de medicina, deveria haver pelo menos uma dica de português:
a diferença entre chance e risco. Quase todo médico diz “chance de
contaminação” ou algo parecido, quando deveria dizer “risco”. Ora, chance é
para eventos positivos, “chance de cura”, por exemplo). O fim do conto é
perfeito, Whisner.
“Jardins” é quase um roteiro para um filme de uma época
tenebrosa (que beleza esta passagem: “ela hasteia o punho direito e se junta ao
coro: golpistas não passarão”; o
verbo hastear aqui é simbólico, genial; o punho fechado, uma bandeira de luta.
Parabéns.). E que força tem a frase “a tropa de choque a abonar a verdade em
sua ameaça”. Mais passagens de alta literatura e cinema: “ele transporta a
perplexidade para a viatura, até que não enxergo mais a mira ou a agonia
coagulada naquele aceno de incompreensão, – não era um aceno – era o corpo se
debatendo”. Cruel, cruel.
“Você está diferente” é outro conto cruel, mas de outra
natureza de crueldade. Que achado: “me entreguei ao agourmentismo, filosofia
que elaborei para justificar a anorexia...”. “Você é mulher”, um brado do
feminismo. Belas expressões: “em plena tarde, na medula da tarde”; “e até mesmo
o aperto de mãos a me deixar com a respiração acidentada”. Na pág. 125, 4ª
linha, não seria “estávamos ali para nos admirar”?, em vez de “nos admirarmos”?
[ajuste para a reedição. Já vi uns senões (erros meus de digitação) nos meus
contos de Certos casais para
consertar na reimpressão, como a falta de vírgula nesta frase (pág. 16):
“Recolhi a mão, a esquerda”.
Depois de alguns textos sem Helena, ela volta em “O mais rápido
que puder” no momento certo e com estilo: “você assoma cambaleante, helena, e
caminha, caminha, um passo copiando outro...”. Sobre “Fome”, incluído antes em Coreografia de danados (2012) eu já escrevi
no artigo acerca do conto brasileiro dos anos 2000 publicado no início de abril
de 2020 na revista digital SP Review:
é obra-prima.
“Serenidade” conversa com o primeiro conto de O que devíamos ter feito, na atmosfera
penosa da covid: “tudo desaparecia e estávamos prestes a flutuar em uma
perplexidade de ausências”. A pandemia atinge até os objetos. Ótimo arremate
para o volume, “ela se lembrava”, como que amarra o percurso das histórias, num
texto de reflexão e alguma digamos serenidade abalada. Aqui, como em outros
contos, está presente a força dos gestos, como “as mãos empunhando um afeto
desdenhoso, abrandado pela ferrugem do tempo, mais ainda rijo, ferrenho” (muito
bom o jogo ferrugem/ferrenho). Sim, um texto de risco, como a vida, como a
literatura. E você descobre, arrisca com segurança e ganha a batalha em todo o
livro. Parabéns, Whisner. Além de grande escritor, você é um grande leitor e
incentivador da literatura brasileira. Seu canal “Acontece nos livros” é dos
melhores serviços da área na internet no Brasil.
Meu grande abraço de gratidão e parabéns.
Hugo.
P.S.: Na
pág. 156, a pontuação não deveria ser assim?: “...com minha mesquinhez, e eu
avivei um ciúme inédito, improvável”.
doido para começar a ler este livro do Whisner, o que farei nos próximos dias. promessa de boa literatura.
ResponderExcluirWhisner, a publicação da minha carta na íntegra sobre "O que devíamos ter feito", mesmo com alguns senões que apontei no livro, é mais uma prova de sua imparcialidade intelectual. Pessoal, vale a pena ler os contos do Whisner, são ótimos. Hugo Almeida.
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