A orelha de Van Gogh e outras alegorias mundanas

 Por Whisner Fraga



Moacyr Scliar (1937-2011) foi um escritor gaúcho, autor de mais de setenta livros, entre romances, novelas, reuniões de contos, crônicas e ensaios. Entre os romances, é importante destacar O exército de um homem só (LP&M, 1973), Mês de cães danados (LP&M, 1977), A estranha nação de Rafael Mendes (LP&M, 1983), A mulher que escreveu a Bíblia (Companhia das Letras, 1999) e Manual da paixão solitária (Companhia das Letras, 2008). Dos volumes de contos, é preciso citar A balada do falso Messias (Ática, 1976), Histórias da terra trêmula (Escrita, 1976) e este A orelha de Van Gogh (Companhia das Letras, 1989), vencedor do Casa de Las Américas, do mesmo ano, certamente o prêmio literário mais importante da américa hispano portuguesa. Ganhou 8 vezes o Jabuti, principal honraria aos autores pátrios e foi membro da Academia Brasileira de Letras.

 Scliar teve como tema principal de sua obra o judaísmo. Ele narrava seguindo o modelo das parábolas, de maneira simples, privilegiando a estrutura tradicional do conto, sempre com um final surpreendente. Há também, em vários momentos da carreira dele, um diálogo com livros sagrados, mas sempre ampliando sentidos e transportando as histórias para a realidade de nosso país. O Brasil não aparece de forma explícita na obra de Scliar, mas podemos perceber várias semelhanças com nossa realidade, sobretudo com relação a uma sociedade extremamente desigual.

 A orelha de Van Gogh traz, ao leitor, 24 contos. O primeiro deles, intitulado As pragas é o mais extenso da obra. Como o título sugere, Scliar traz para um tempo e um espaço indefinidos a história das dez pragas do Egito, os personagens são retratados como profundamente humanos e isso pode ser visto porque o narrador usa de um artifício muito inteligente: ele dá voz às personagens, que contam sua própria versão da história. E isso é, de certa forma, irônico. A ironia é uma das principais característica deste livro de Moacyr Scliar. O leitor pode supor que o narrador deste conto seja um egípcio contando sua versão desta parábola bíblica. Este conto é também engraçado, leve, em alguns momentos, principalmente quando um dos membros da família, muito prático, sempre tenta tirar vantagem das tragédias que chegam.

As narrativas deste livro sempre tentam subverter a ordem de histórias amplamente conhecidas, ora acrescentando alguma informação, ora reinterpretando. O absurdo também está presente nos textos, a realidade, muitas vezes, beira o fantástico e fatos quase impossíveis ocorrem com uma naturalidade que surpreende o leitor. O conto Orelha de Van Gogh, por exemplo, é de uma ironia extrema e de um humor muito refinado. Nele, o dono de um pequeno armazém, homem pouco prático, está cheio de dívidas com outro indivíduo poderoso. Ele tenta descobrir um jeito de liquidar o débito de uma forma pouco ortodoxa. Descobre que o credor é fascinado por Van Gogh e resolve usar essa paixão em seu favor, mas comete um erro grave durante essa tentativa de enganar o outro.

 A prosa de Moacyr Scliar é enxuta, de fácil leitura, sem floreios, com o objetivo claro de contar histórias, num tom simples, fluido e eficiente. Os fatos são mais importantes do que descrições, diálogos ou outros recursos comuns à prosa. Alguns contos tratam da própria literatura como objeto narrativo e especulativo e não somente sobre formas ou teorias literárias, mas dos próprios meandros da publicação. De forma muito inteligente, de quem conhece o assunto, Moacyr traz, em Inéditos, uma poeta rica, que procura uma editora para publicar seus versos. O editor é medíocre, não entende de literatura e tem como objetivo extorquir a poderosa senhora. Como de costume, haverá várias reviravoltas na trama.

 Infelizmente, hoje Moacyr Scliar não é mais tão reconhecido e lido em nosso país quanto foi ainda em vida. É um escritor que vale ser conhecido, que precisa ser redescoberto. Estes contos de A orelha de Van Gogh podem ser uma excelente entrada à uma vasta produção literária, que deslinda muito da alma do povo brasileiro, ainda que não tenha, explicitamente, este objetivo.


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