Dois grandes contadores de histórias

Professor aposentado pela USP, com temporadas em universidades dos Estados Unidos e de Portugal, o romancista, poeta e crítico literário Álvaro Cardoso Gomes [Batatais, 1944; vive em São Paulo] talvez seja o mais eclético e produtivo escritor brasileiro. Autor do best-seller juvenil A hora do amor (1986), tem quase cem livros publicados, a maioria infantojuvenis, alguns vencedores do Prêmio Jabuti, e acaba de lançar o delicioso, emocionante, comovente e às vezes divertido O contador de histórias (FTD, 2024). 

Trata-se de uma cativante biografia romanceada do escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), de A ilha do tesouro (1883), narrado em primeira pessoa pelo enteado pré-adolescente Lloyd Osbourne, que o chamava de tio Luly, mas o amava como se fosse o verdadeiro pai, seu “pai espiritual”. Álvaro escreve sobretudo acerca da gênese do célebre livro, a vida de Stevenson desde o nascimento, a infância e a juventude e depois a vida alegre e feliz com a escritora norte-americana Fanny Osbourne e seus filhos. “[tio Luly] beijando mamãe, murmurava, cheio de encantamento: Ah! Isso é que é vida”, escreve o garoto. Claro, a história inclui outras páginas comoventes, com as da morte de Stevenson aos 44 anos e as últimas palavras dele, gravadas no túmulo.

É admirável a maneira cheia de vivacidade com que o escritor paulista conta, sob o ponto de vista do menino, a história do fascinante e tão humano Stevenson. Lloyd ouve da “avó” Maggie, que o acolhe com irrestrito amor, como foram penosas a infância e a juventude do futuro escritor, que nasceu com sérios problemas pulmonares, a convivência com a ama lacônica, severa e afetuosa, que, “aos poucos, com paciência e um carinho rude, foi conquistando as graças daquela criança sempre doente”, mas lhe contava histórias assustadoras de fantasmas e demônios, e suas divergências com o pai engenheiro de faróis. 

Álvaro Cardoso Gomes recria diálogos naturais, boas e alegres horas da família, e outras de apreensão, como os momentos dramáticos vividos por Fanny para conseguir o divórcio do marido norte-americano tosco, frio, de “vida errante”, mulherengo, pai e marido omisso, tudo como se o escritor tivesse presenciado as cenas, um filme projetado nas páginas do livro. Notável também, entre tantas passagens, a recriação ou simulação da busca do tesouro numa ilha ao lado do garoto e da irmã, Isobel, uma aventura e tanto, e o diálogo deles com o escritor a respeito de trechos de A ilha do tesouro, que Stevenson estava escrevendo e lia, empolgando a mulher e os filhos, que também davam palpites. Além de outro grande livro de Stevenson, O médico e o monstro. Preciosas páginas de lições úteis de literatura para jovens candidatos à carreira literária.

O volume traz substancioso prefácio de Sandra Guardini Vasconcelos, professora titular de Literatura Inglesa na USP, capa e ricas ilustrações de Alexandre Camanho, e um bem-elaborado suplemento de leitura. O contador de histórias integra a Coleção Meu Amigo Escritor, organizada por Gomes, que já publicou narrativas na mesma linha sobre Fernando Pessoa, Camões, Machado de Assis, Mário de Andrade etc. Sandra Guardini lembra que Stevenson deixava a fantasia fluir com liberdade e explorava “as sensações de perigo e medo” em suas histórias, nas quais lançava mão do maravilhoso e do extraordinário, sem deixar de lado a “densidade de observação”. 

Tudo isso se lê também no trabalho de Álvaro Cardoso Gomes, que incorpora ao livro trechos de A ilha do tesouro e de O médico e o monstro. No posfácio de seu enciclopédico romance Os rios inumeráveis (Topbooks, 1977), “somatório ou fragmentos de romances que gostaria de ter escrito”, Gomes afirma ainda: “Glosando Pessoa, diria que todo escritor é, no final das contas, um glosador, em vista do fato de que neste mundo de ilusões nada há de novo sob o sol”. O encontro de Gomes e Stevenson, dois exímios contadores de histórias, encanta leitores de qualquer idade.

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Hugo Almeida, jornalista e escritor, é doutor em Literatura Brasileira pela USP e autor de 15 livros publicados, entre eles o romance Vale das ameixas (Editora Sinete, 2024). Em novembro deste ano, a Sinete vai lançar o 16º livro de Almeida, A voz dos sinos, ensaio livre sobre o sagrado, a mulher e o amor na ficção de Osman Lins (1924-1978).


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