"A cidade dos cachorros abandonados"
“A escada de acesso estava bem iluminada quando parei à porta procurando pela chave. Descansei a bolsa tiracolo no aparador, tirei também o casaco e me virei para o escuro da casa. A serenidade da tarde não denunciava estranhezas, mas quando acendi a luz e me virei, o demônio já estava à minha espera.
‘Demorou’.
Desperta a pergunta no leitor: que porra é essa mano?! Bem; ao menos foi o que pensei eu, já entrando no clima da obra. Nessa toada ou, nessa levada louca de demônio esperando um sujeito na sala de sua casa, que o leitor, cidadão pacato e cordial, é apresentado ao livro de estreia na literatura do professor e escritor paulista Fred Fogaça.
Editado pela Editora Sinete, “A cidade dos cachorros abandonados” é o título da obra desenvolvida em cinco capítulos. É plasmada em monólogos envolvendo três personagens. Santiago, um jovem inexperiente de origens nortistas em busca de um sentido para a existência, seu fiel amigo Bartolomeu, com quem troca confidências e ouve conselhos e esporros e, finalmente, o tal do demônio, que inopinadamente aparece e dá penadas na vida de Santiago. Essa simplicidade do enredo. Entretanto, o texto ganha uma vivacidade extraordinária pelo estilo que o autor lhe imprime. O que, desde logo, chama a atenção é a espontaneidade que a narrativa consegue dar às frases curtas e aos poucos diálogos. Surpreende a linguagem vibrátil grafando a aparência vívida da realidade humana com exatidão e esmero. Estamos diante de uma escrita transgressora na forma e que atrai o leitor pela problematização pautada na linguagem e no estranhamento causado pelos motivos presentes no texto.
Santiago é presa de um mal-estar existencial tremendo. Este o tema fulcral em que passa a centrar-se a narrativa. As conotações morais da inércia do ser humano frente ao fluxo heterogêneo da experiência; o cansaço da vida e a falta de comunicação; o sentimento de frustração e exílio da existência natural; a morbidez cerebral e narcisística. Interessante notar que o ‘delírio existencial’ de Santiago envolve encontros superficiais e sem amor com namoradas que nunca são nomeadas, tratadas sempre e somente, como “ela”; toda a frustração da vida vazia de redes sociais com suas “linhas de tempo de status e mais mais status de vidas encenadas; os conflitos violentos com a mãe; o jogo de gato e rato que mantém com seu chefe na fábrica onde trabalha; o ódio mortal que sente por um velho dono do apartamento que acaba alugando; seu consumismo desenfreado e em primeiro lugar, e acima de tudo, o ódio pelo que ao “a cidade” representa de opressor para ele e para todos. A obra, não resta dúvida, apresenta uma trama de forte componente urbano mostrando a cidade como um lugar opressor, perigoso e capaz de corromper os homens. Realmente um clima perturbador. Triste criatura é Santiago. Triste porque no quesito emoções, sempre orbita nas negativas quais sejam. Medo, raiva, calculismo, carência, rancor, revolta, desorientação e solidão... E essa tristeza em nós aumenta quando nos damos conta que são esses os sentimentos predominantes no mundo. Esquecemos NÓS, que existem e devem ser cultivadas emoções como compaixão, gratidão, serenidade, altruísmo, empatia e, sobretudo o amor...
Mas Santiago também dentro de si uma consciência que hurra: “Coisas que foram resultado de impulsos e agora se revoltam, me acusam a existência disfuncional. Estive tão perto de ser completo até se tornar tudo um comprovante da mentira que foi essa construção de mim - a fuga de tempos que estive.” p. 18. O resultado é a desarmonia entre o mundo da realidade e o da intuição, ambos reais.
Há momentos em que a narrativa alcança patamares impressionistas, com a utilização de recursos como a valorização das emoções e sensações, o foco na descrição de impressões e aspectos psicológicos das personagens, a importância da memória e busca por um tempo que não existe mais e a sugestão de imagens e impressão de atmosferas. Tais recursos no âmbito de uma trama em que pouco ou quase nada acontece de fato, causa ambiguidades nem sempre muito claras do que realmente ocorreu.
O modo de compreensão estática do mundo é contraposto à dinâmica do tempo. Um contexto, onde os fenômenos estão em fluxo e a realidade torna-se um eterno devir. Esta tendência na narrativa pressupõe que a impressão pessoal e subjetiva de um indivíduo tem prevalecido.
“Mas a compreensão dessa natureza garantia vantagens de uma certeza: a de que, em qualquer dada situação, nossa percepção sempre é parcial e inclinada a nosso favor. Na completa falta, então, de uma percepção absoluta e neutra da vida, só ao que podemos nos agarrar é à nossa mesquinhez. Nossa arrogância de que, mesmo nunca sabendo a verdade, podemos cuspi-la da forma em que nos parece aos olhos.” p. 35.
Santiago a princípio concebe toda a sua existência como luta e competição. Mas passa a ter plena consciência do caráter mutável das coisas, percebendo que todo fenômeno é passageiro e único. Entretanto, ao longo de sua jornada, vai aos poucos desenvolvendo agudo senso da perda da qualidade da existência. E denuncia o estilo existencial pós-moderno, marcado pela uniformização das ideias e atitudes e pelo desaparecimento progressivo das formas genuínas de diálogo e comunicação:
“Há uma falta de narrativa no mundo para a qual eu nunca vou conseguir ser o suficiente, agarrar com as mãos todas as variáveis de controle e é terrível aceitar isso.” p. 106.
Duas ocorrências quase simultâneas da desventura generalizada de Santiago o levam à uma verdadeira ‘sinuca de bico’. O misterioso desarranjo de uma prensa na fábrica em que ele trabalhava como encarregado de manutenção, e o caso do quilo de maconha que, como um favor a um amigo, foi escondido no forno de sua casa, e acabou queimando acidentalmente. Agora dois demônios extras entram na “time life” da vida real de Santiago. Prestar conta da maconha ao ‘amigo’ traficante, e as cobranças que passa a sofrer de seu chefe na fábrica. Sinuca de bico daquelas!
Santiago segue a cada dia sentindo-se preso a um “vórtex de sensações: o desespero da inanição psicológica lacerando até os ossos, como se uma energia contida e subutilizada acumulasse até a imediação de me explodir com tudo.” p. 89. Conseguirá Santiago ver luz no final do túnel, e como ele todos nós? Até que ponto terá a ajuda de seu fiel amigo Bartolomeu? Deixariam os demônios de atormentá-lo? O leitor terá que fazer seu esforço para divisar caminhos possíveis, no desfecho surpreendente desta narrativa do senhor Fred Fogaça. À propósito, e confirmando o refinamento da prosa de explorações psicológicas, há passagens que, que exigem leitura atenta, inclusive para saber quem é quem, de fato: “Naquele dia de domingo, com o diabo, o cachorro nos via. Julgava? O olhar de me consumir as forças. Deitado, mas me acompanhando nos delírios pelas frestas e não se manifestou. Ele teve medo do demônio? Ou era ele o demônio? Ou eu quem sou ele?”. A coisa é séria, tão séria que nesse ponto o autor (o autor não, Santiago), insere mais uma nota de rodapé com a advertência: “Não assuma certezas”. p. 74.
Resta-nos sonhar? Acreditar? Seria já bom começo se entendêssemos que “a natureza é o deus palpável da humanidade”. Ou ao menos, o meio pelo qual Ele se manifesta. Dado o estado do mundo hoje, não é de estranhar que a natureza esteja reivindicando o equilíbrio que lhe foi usurpado. Sim; dia virá em que, num processo ‘esperto e natural’, o homem será condenado a “colher da terra o que quiser comer e suas interferências não vão ser mais bem-vindas; coagido às próprias tecnologias, vão ser forçados ao pacifismo”. O “chamado a unidade, a redenção do nosso pensamento fracionado” já começou.
Uma das frases que abrem a narrativa do senhor Fred Fogaça, a título de epígrafe é: “E, de dentro, ouvia-se o tecer de uma mentira.” Ao fim e ao cabo desta obra, o leitor sensível há de ouvir o sussurro de sua consciência: Existe um herói, se você olhar dentro de seu coração.
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Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema, À flor da pele – Contos e Destinos que se cruzam - Romance. Participou de 30 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.
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