Um rápido abraço da tradução em Rimbaud


Aqui, trata-se de Arthur Rimbaud. No mês de outubro de 2024 completaram-se exatos 170 anos desde o nascimento desse vulto estelar (que assim o foi pelo menos durante certo período de sua curta vida – “partiu” do mundo com a idade de 37 anos!).

Comecemos por visualizar, grosso modo, a vida ao mesmo tempo surpreendente e explosiva desse precoce jovem Rimbaud que, aos vinte anos, era já autor de trabalho poético lapidado à perfeição. Sua criação literária em verso e prosa é de tal modo vigorosa e auspiciosa que alguns críticos lhe atribuem todo o caudal sequente que desembocaria na então poesia de vanguarda.

Rimbaud concebia sua obra como resultado, ao mesmo tempo, condicionado por, e condicionante de sua vida. Resultado a que ele pensava chegar pelo esforço da vontade, mas paralelamente pelo desregramento de todos os sentidos, dois aspectos aparentemente inconciliáveis que, assim concebidos, afloram um dilema. Tema para outro texto.

A seguir, soneto de Arthur Rimbaud, em francês e com respectiva e possível tradução para o português. Embora ainda respeite métrica e rima, o tema já prenuncia o caminho do ir-se eternamente, um desígnio que se estabeleceu desde o ventre de sua família: 


Ma Bohème (Fantaisie)**
Je m’en allais, les poings dans mes poches crevées;
Mon paletot aussi devenait ideal;
J’allais sous le ciel Muse! et j’étais ton feal;
Oh! là là! que d’amours splendides j’ai rêvées!

Mon unique culotte avait un large trou.
- Petit-poucet rêveur, j’égrenais dans ma course
Des rimes. Mon auberge était à la Grande-Ourse.
- Mes étoiles au ciel avaient un doux frou-frou

Et je les écoutais, assis au bord des routes,
Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes
De rosée à mon front, comme un vin de vigueur;

Où, rimant au milieu des ombres fantastiques,
Comme des lyres, je tirais les élastiques
De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur!


Minha Boemia (fantasia)
Assim, punhos cravados em bolsos sem cor
De um pobre paletó quase inteiro rasgado,
Sob o céu eu seguia, à musa escravizado
Oh céus! nos sonhos que sonhei, quanto esplendor!

Com um largo furo no que calça fosse,
Dei rimas – pequeno polegar sonhador –
Às estradas. Meu albergue, na Ursa-Maior,
Fazia estrelas no céu farfalharem doce

Para eu escutá-las, à beira do caminho
Setembro, mansas noites, seu vigoroso vinho
Provei desse orvalho em rosa inundando o chão.

E ali, mergulhando rimas em breus fantásticos,
Das botinas feridas eu dedilhei os elásticos,
Tocando com meu pé em lira o coração.


De todo modo, em Minha boemia, a representação do poeta como um pequeno polegar sonhador e peregrino, vivendo sobre  caminhos dispersos, sustentado quase que exclusivamente por “sonhamentos”, é emblemática da própria vida de Rimbaud. Com base nas inúmeras biografias que existem hoje sobre o poeta, sabe-se que ele tudo abandonou para trilhar sendas (ou nuvens) inexploradas, dolorosas, mas libertadoras, em sentido metafísico. Tudo por que ele ansiava, enfim.

Essa disposição visionária era algo inconcebível para a sociedade literária de então, cegamente enclausurada na forma, sobretudo pela supremacia do então parnasianismo. Rimbaud se enquadra entre os simbolistas emergentes e/ou também chamados nefelibatas. Mas é bem verdade que ele superou a toda essa poesia mansa com uma irreverência e um talento de verve solar. Um paralelo seu somente viria ao mundo quase cem anos depois (1914), no País de Gales, o divino Dylan Thomas.

A tradução de uma poesia, mais do que apenas os versos em si mesmos, comporta intrinsecamente a tradução do escopo de vida de seu autor, passando, assim, pela ossatura de seu passado, tudo que o concebeu, enfim. Como traduzir (por exemplo o soneto Bohème), como incorporar em sentimento e verdade uma poesia de tamanho requinte sem estar “mediúnica” com o universo de seu criador?

Um agente de tradução carece, portanto, de sensibilidade, conhecimento e alteridade. Trindade inalienável. Tudo isso, porém, não subtrai no processo a sombra, a ingerência pessoal e/ou também ossatura desse mesmo agente. 

E eis aí finalmente o texto se abrindo ao infinito. O aqui infinito da criação conjunta. Universos a priori diversos que se mesclam em tempos distintos, porém paralelos pela natureza de interagirem para um uníssono artístico. 

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*O Prazer do texto, Roland Barthes, Editora Perspectiva, 1987.
**Oeuvres complètes de Arthur Rimbaud, Librairie Gallimard, 1951.

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Alexandra D'Orsi nasceu em 1962 em Campinas (SP). Cresceu nessa mesma cidade onde cursou letras pela Unicamp. Mudou-se para a cidade de São Paulo, em 1987, para trabalhar em diferentes editoras, quando também publicou seus primeiros contos. Retornou a Campinas, onde ficou algum tempo em agência de publicidade e editoras, como freelancer. Postulou para um DEA em tradução na França, visando a obra do poeta Arthur Rimbaud. Foi bem-sucedida, mas, já em Lyon, compreendeu que a experiência de entender e viver Rimbaud estava muito além dos bancos de uma universidade. Saiu a vivê-lo. Voltou ao Brasil em 2003 e ao trabalho para editoras como freelancer, bem como ministrando língua portuguesa para estrangeiros. Em 2017 passou a viver em San Juan (Puerto Rico), onde permaneceu até meados de 2022. Atualmente mora no Brasil.


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