Você tem fome de quê?

A ampla capacidade de transformação do gênero a que damos o nome de conto em literatura, tem gerado em nossa era marcada pelo esfacelamento, pela fragmentação, pela velocidade e intensidade, obras de excepcional qualidade, e que dia a dia se aprimoram na técnica da microficção. Tais obras se caracterizam basicamente por se constituírem em narrativas breves ou brevíssimas. Exiguidade estrutural. A ideia é que, com um mínimo de palavras, seja apresentado todo um contexto e uma ação em torno do pouco que é revelado, e em assim sendo, mais importante que mostrar é sugerir, deixando ao leitor a tarefa de "preencher" as elipses narrativas (omissão intencional de códigos e/ou informações facilmente identificáveis pelo contexto), e entender a história por trás da história escrita. Concisão, narratividade, subtextos e ausência de descrição. Retratos de "pedaços da vida" se poderia afirmar.

O escritor Júlio Cortázar definiu bem um recorte que os contistas podem e devem realizar em seus textos: ao escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, e que não só valham por si mesmos, como podem causar mais facilmente nos leitores uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido no conto. Ficcionistas talentosos no Brasil tem apostado nessa visada literária. Um deles é o senhor Whisner Fraga que de livro para livro, vem tecendo magistral painel da sociedade brasileira perdida em agruras e precarizações nas quais imperam as muitas formas de exclusão e desencontro.

A recente publicação do volume “As fomes inaugurais”- contos pela Editora Sinete, de autoria de Whisner reúne 55 minificções ou textos breves (não cabe aqui adentrarmos em definições estéreis quanto à classificações estruturais tipo: nanoconto, microconto, miniconto, conto ultracurto ou conto curto), O certo é que as narrativas ficcionais mínimas de Fraga atingem o leitor com um vigor imenso de lucidez crítica. O mais certo ainda, é que a urgência da denúncia social engendra enredos e formata personagens. Resta saber como isso é feito. Os enredos das narrativas se estabelecem sobre uma sequência de micro-acontecimentos ou ações (nós dramáticos), que determinam reações. Sobre um estado inicial, um ator, uma personagem, uma subjetividade, exerce uma ação, que pode ser um pensamento, um comentário, um gesto, ou uma intervenção. Esse estado inicial rapidamente se transmuta entretanto, se modifica e um novo pensamento, um novo comentário, um novo gesto, uma nova intervenção ocorre. E então os textos acabam por se constituir em redes, teias, telas, num entrelaçamento de informações linguísticas que acabam por constituir signos, gerando significados, texto e discurso.

Diante das escolhas do autor, quedamo-nos perplexos. A temática abordada de sutil angulação quanto ao enfoque, revela nos textos nossa impiedade, nosso desamor, a indiferença ou a maldade deliberada, ao lado de textos outros de um lirismo comovente, verdadeiros “estilhaços de prosas poéticas” . Fraga mira sua pena certeira contra nossa cultura da imagem, do supérfluo, do hedonismo e do simulacro que engendramos na sociedade brasileira para perpetuar, via desigualdades, e diferenças arbitrárias os cobertores que não-cobrem-nada, e justificar afinal como naturais à vida em sociedade. Quem são os milhares e milhares de desvalidos que vagam famintos de tudo pelas ruas brasileiras? Quais são em verdade as suas/nossas ‘fomes inaugurais’? 

Por considerar as meras transcrições de trechos dos livros que tenho tido a oportunidade de resenhar uma perda de tempo precioso, não costumo lançar mão de tal recurso. Entretanto, no caso particular deste, é recurso imperioso para melhor notícia dos excepcionais efeitos ficcionais que o autor, em sua economia verbal e concisão cirúrgica fala e cala em nossas consciências. Antes porém, não deixemos de registrar alguns exemplos de textos extraordinários pelo que revelam do engenho e arte autorais na busca da melhor expressão para as narrativas que flagram a inventividade e o desnudamento das relações de força e violência destrutiva que organizam o tecido social brasileiro. Ninguém se persuada afinal, de que esta obra trate ou se empenhe em tecer conjecturas sobre a fome física de desvalidos. Não. Faz verdadeira ‘digestão’ sobre outra fome. A do espírito que não se sacia em meio ao sórdido ambiente social no qual vivemos. Aí a fome inaugural da consciência.

Merecem registro em particular “Brasões, flâmulas, insígnias” (p.33), que demonstra com muita força o juízo que fazemos sob a existência e classificações possíveis para os desvalidos da sociedade brasileira (mendigo, morador de rua e/ou pessoa em situação de rua). Por sua vez, o texto “solidariedade” (p. 41). é um alerta sobre até que ponto chegamos com a cultura da esmola pura e simples ou se quiserem, do assistencialismo cego. E finalmente, a “bola da vez” do homem pós-moderno perdido. A sexualidade tratada como mero instrumento de consumo hedonista numa “live” na qual duas mulheres exibem corpos e carícias num desespero de aumentar sua receita digital via PIX e seguidores, quando em verdade, na vida real, ou como ela é, anseiam desesperadamente conseguir pagar um simplório jantar de padaria, como ocorre no conto “ao vivo” (p.69) . Muito bem: passemos afinal a palavra às criaturas do autor:

Conto “o apetite incorruptível”. p. 14.

“desmistificaremos a militância, helena: aliciamento e regalias e planilhas orçamentárias de partidos projetadas em convenções precisam de aportes, armas são caras, impulsionamentos em redes sociais são caros, subornos são caros, campanhas de conscientização são caras, licitações são caras, brindes, cartazes, faixas, helena, colchões, cobertores, botas, tickets: caros, e a origem dos depósitos que darão fôlego à luta?, não se inquiete, é por uma ótima causa, helena, eu juro, apesar da corrupção, é a lida, fundamental é a abundância: o ativismo, o partido, a entidade, os desvalidos reconhecem: um dia o município ficará abarrotado de estátuas de bronze em minha homenagem e, helena, elas não são baratas.” 

Conto “planejamento”. p. 34.

“complicado obter o documento: a identidade faz par com o título de eleitor, basta se encaminhar para a seção, a diferença é o deslocamento gratuito no domingo, o colégio a dezenove paradas, é apertar o número do candidato, o botão verde, a música confirma o voto, torce pela indicação do deputado: que cumpra o pacto de aprovar um programa e tirá-lo da mendicância!, conquistar uma suíte de hotel, a nova política possibilitaria a estabilidade, a locação de um quarto-e-sala: fantasiar uma noiva e, talvez, apresentá-la à sociedade que, finalmente, o acolherá.” 

Conto “salvação”. p. 36.

“a irmã avisou: exclua deus e finde no mundo: ocasionalmente, aparece o pastor, lê a palavra, aconselha, apressado, decifra um trecho da bíblia toda manhã, sai para o garimpo, corteja essa aliança enfermiça, quer compreender os versículos, interpretar os salmos, reaver a fé, se empenha: que o verbo a liberte do mal, ela se acerta, deus me tira da miséria, deus salva, deus me ouve, amém.”

Nem Política, nem Estado, nem cidadania, nem religião. Nada! O que grassa é o amargo descontentamento coletivo, grande metáfora de um generalizado deslocamento de despertencer(se). Adiante:

“O apetite dispendioso”.p. 15.

“dezoito graus de um outubro inesperado, a paulista devorando os militantes, a garoa interrompendo nossos beijos, helena, nossa comoção pelo protesto, nossa urgência de ir à padaria bela vista comprar uma pizza, deixar ao lado do homem: o camarada se surpreenderá com a massa fina, com a cobertura vegana, o tempero combinando acre e melico, os pingos encorpam, prejudicam nosso ativismo, helena, tínhamos tanto interesse em dar um smashburger a ele: a chuva estreia o desarranjo na avenida saturada e isso estorva toda a nossa boa vontade.”

“Não haverá audiência”. p. 31.

“completa com o endereço do bar do seu manuel: pleiteia o cargo de supridor, a concorrência pesada, tantos jovens buscando ocupação e apenas cinco vagas, a fábrica deve ser nas redondezas: se for distante, como chegará, sem verba para o bilhete?, a secretária patrulha a sala, sete postulantes devolveram o formulário preenchido, chega a vez dele: desconfiança aquele desdém?, ela capta o contexto?, ele se trai?, o cabelo oleoso?, a pele manchada?, entrega os papéis, joga o extremo da vista rumo à esperança de emprego e vê que ela escreve na ficha dele: pergunta do que se trata?, e a coragem?.”

“Solução”. p. 37

.“disquei 156, um passa de cá para lá, vem a promessa do serviço social: adianta?, o cartaz afixado no albergue dispõe: horário de chegada, saída, austeridade, eles estão acostumados com a balbúrdia, não se demoram: meu, não é colocar na perua de desaparecer?, eles têm direitos?, olha, a favor de crueldade não sou, mas atraem a criminalidade, o povo elege prefeito, obrigação criticar, propor, né?, mobilizar a secretaria da moral, família e herança, cobrar os poderes, agir, encabeçar um abaixo-assinado, angariar recursos, pressionar autoridades, estamos ou não em um país sério?” 

“Estamos ou não em um país sério?” É pergunta que não cala. No esclarecedor posfácio assinado pelo escritor Hugo Almeida, há uma referência à filósofa Marilena Chauí. Teria ela declarado em entrevista recente: “A sociedade brasileira é uma sociedade autoritária, violenta, hierárquica, discriminadora. [...] Vivemos numa sociedade hierarquizada, dividida, segmentada, movida por preconceitos e violências e que tem num horizonte muito distante a noção da importância dos direitos, os direitos sociais, os direitos cívicos, os direitos culturais”.

E você leitor, de quê tem fome? Para os que colocam a consciência pouco acima do estômago, é pergunta difícil de responder. A verdade é que acabamos todos esfaimados, esfomeados, famintos, e encarcerados, ainda que provisoriamente, nessa bolinha de barro em que nos confrontamos. Difícil digerir uma coisa assim, não? E sujeitos a uma simples questão de pura “Física”. A bolinha de barro que é o planeta ante o universo, gira, e nesse girar, ninguém sabe quem vai comer filé-mignon ou farofa de água e sal na próxima volta. Se a pura e simples “fome” de simpatia e afeto pelo gênero humano não tem servido para saciar nossa fome maior até aqui, fiquemos com o calculismo pragmático e cínico dos glutões, que nos dirige, orienta, e afunda cada vez mais. Quem sabe tenhamos um bom apetite?, quem sabe uma infecção alimentar fatal?... quem sabe? 

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Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema, À flor da pele – Contos e Destinos que se cruzam - Romance. Participou de 30 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.   

  

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