Caixa de vazios
Três compartimentos ou seções dividem a obra: “Uma árvore quase pronta”, “Fazenda Harmonia” e “Sombra feliz”, a reunir ao todo, 96 poemas. O autor que também é engenheiro de formação constrói uma obra marcada pela simplicidade da linguagem, próxima da coloquialidade, dentro de uma sensibilidade e delicadeza casadas com humor e ironia. Acerta a mão na dosagem das palavras ao aglutinar ainda, reflexões sobre a existência humana na abordagem de temas como a solidão, o amor, o tempo, a natureza e o social.
Difícil estabelecer ao certo, em qual solo exatamente o autor pisa e escava o construto de sua poesia, dada a multiplicidade dos terrenos pelos quais se move, e os vários itinerários que constrói em uma expressão que alterna movimentos de fina ironia com extrema solidão. O certo é que, nos parece, a solidão deve, nessa obra ser entendida também como espaço de ausência na escritura poética. A leitura nos mostra a superfície e a profundidade dos terrenos de uma poesia cujas variações estéticas se multiplicam nos movimentos espacializantes da obra, como representação do homem da pós-modernidade perdido no meio da multidão de cidades imensas, das injustiças sociais, dos eternos desacertos de nossa democracia confusa mais-que-demais [ver poema “Urubus” - p. 71], das nossas relações voláteis e da superficialidade cibernética de likes das Redes Sociais que acabam por configurar elementos de plasticidade e ausência que, niveladas no plano da existência vivida, renovam-lhe o mundo da experiência formal. Eis um dos méritos do autor!
Vale ainda referir um fato interessante: o autor escolheu para a abertura de Caixa de vazios, o longo poema “Estreitos”. O título deste belíssimo poema é emblemático por si só, porque introduz na experiência viva do leitor toda uma expectativa de devir, cria uma imagem que só se preenche na medida em que se evolui para a leitura dos outros poemas. Esse texto é entrada privilegiada na enunciação da obra, num processo de imbricamento entre os elementos propositivos do tempo, da memória e do espaço que se entrecruzam à medida em que a obra avança como construto metafórico do processo vivencial do autor. Se ampara nas marcas da solidão e do isolamento. Entretanto, se alguns poemas trazem as marcas de melancolia e solidão, havemos de considerar também, que tais sentimentos nivelados no plano da existência vivida, renovam-lhe o mundo da experiência formal, e acabam por reorientar outras percepções existenciais. Esclarecendo ainda mais a questão: a abrangência temática da metáfora “caixa de vazios”, e de seus desdobramentos, em momentos de solidão e/ou ausência, proporcionam verdadeiras epifanias, ou seja, revelações, súbitas. Compreensão das coisas, da vida e; da morte. Esta tratada inclusive como piada como acontece no poema “Pinguim”.
O leitor ficará encantado ao ler um poema como “LinkedIn” que demarca o transcurso do tempo, o envelhecimento, e o espanto que nos causam as redes sociais tidas por muitos como grande fuga da dura realidade.
Humberto visita também a metaficção com muito humor no poema “Bezouro azul”.
Não há como deixar de se encantar ainda com o lirismo vertido em tão poucas palavras, que nos sugerem até um requinte de devaneio a seguir imagens tão simples, como acontece no poema abaixo:
Há também lances de incertezas? Dúvidas, e quase desespero fruto da pouca ‘lucidez’? Há. Natural assim mesmo como a vida é. Poema “A pedra filosofal”.
Somos ainda surpreendidos com poemas como “Orquídeas”, no qual é invocado um universo de pequenas coisas que se configuram imensas enquanto valor afetivo que pugna pelo mundo das recordações.
Finalmente, concluímos a leitura da obra sem aquela primeira impressão inicial que o título nos sugere: desconsolo, solidão, e desalento? Não e não, a leitura atenta da obra aponta para uma solidão cheia de vozes que são as nossas mesmas, e acabam por ecoar no abundante desejo de vida do autor, na sua copiosa e rica humanidade farta de experiências, e; melhor que tudo, fértil de novas percepções.
Em seus espaços poéticos de movediço itinerário solitário, Vicente Humberto abre horizontes de uma poesia que se identifica com a resignação e revolta do sujeito pós-moderno perdido nas caixas de vazios do mundo que criamos, e que somam às perdas de toda uma existência. A metáfora da solidão atravessa sua obra como atravessa a vida: contorna tanto uma quanto outra, faz mostrar aos leitores que a poesia em sua singularidade só se realiza na perspectiva do movimento e da transformação. Nela temos a experiência de uma reclusão que se mobiliza no itinerário da vida vivida e que sai do isolamento singular de sua intimidade como fonte inesgotável de aprendizado, que o poeta conquista tanto dentro do seu universo de experiências, quanto dos mais recônditos e profundos caminhos da obra. Do que decorre afinal que; contrariamente ao que já se escreveu a torto e a direito, a vida, vale sim a pena. Vale a ‘dor’ de ser vivida.
Caixa de vazios, Vicente Humberto
Editora Ficções, 2024
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Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema, À flor da pele – Contos e Destinos que se cruzam - Romance. Participou de 30 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.
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