O tamanho da fome
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos
“Você tem fome de quê?” perguntam os Titãs na já clássica canção pop Comida, lançada em 1987. E respondem: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. Se você tem fome de boa literatura, tenho um prato cheio para lhe oferecer: As fomes inaugurais (Sinete, 2024), do escritor Whisner Fraga, é um verdadeiro banquete para quem aprecia um bom texto literário. O volume reúne pouco mais de cinquenta pequenos contos que flutuam sobre um mesmo tema: os desvalidos, os invisíveis, os à margem de tudo, os famintos de todo tipo de alimento, para o corpo e para o espírito.
Como fragmentos de uma realidade cruel, as pequenas narrativas funcionam como flagrantes trágicos de indivíduos desprezados pela sociedade, mendigos, sem tetos, prostitutas, sujeitos a todas as formas possíveis de violência, física e moral. Mas se engana quem pensa que vai se deparar com um mero catálogo de mazelas da sociedade neoliberal ou um panfleto de cunho neozdanovista. Não, de forma alguma não. Para um escritor como Whisner Fraga, a linguagem está sempre a serviço de uma forma estética que, privilegiando o texto literário, não abre mão do compromisso com seu povo.
Os pequenos contos se sucedem numa espécie violenta de minúsculos retratos do cotidiano de gente como o do rapaz gay que, sofrendo a violência paterna por conta de sua condição de homossexual, acaba por descobrir, também violentamente, que “A rua não é adequada para uma bicha”, ou daquele que “era bancário antes de abraçar o desprezo” e que sacia sua sede com uma garrafa de 51, ou então daquela mulher parideira que ouve de uma voz não identificada “a senhora tem seis filhos, já trepou demais, porque, com seis filhos, no mínimo cem arremetidas”. São homens e mulheres famintos de afeto, de respeito, de consideração, de um mínimo de fraternidade. As ruas são testemunhas de suas tragédias diárias e nada escapa ao olhar atento e sensível do autor. Nada lhes é permitido, estão sempre à margem, na periferia da periferia dos desejos.
Num pequeno conto, com uma imagem de grande beleza poética, um desses infelizes da rua se diverte, vestindo-se de pombos que revolteiam sobre ele, em busca de farelos de comida. A cena, cinematográfica, nos desperta, a nós que nos sensibilizamos com a condição humana, a simpatia por esse sujeito que, mesmo ali, na sarjeta, se encanta com as aves que flutuam ao seu redor. Mas o mundo real não faz concessão a qualquer simpatia e a narrativa nos invade com violência: “flutuariam, nesse ritmo, não fosse o vigia da ronda abordar, com o porrete e transformar aquela alegria num amálgama de hematomas, ódio e dever cumprido”. Sim, isso mesmo, a banalidade do mal introjetada naqueles que descem a porrada, que expulsam, que limpam a “sujeira humana” das ruas da metrópole, escondendo-a do olhar bem alimentado dos passantes, daqueles que não têm fome.
Como bem definiu o posfaciador, Hugo Almeida, As fomes inaugurais, a obra, é um Cântico aos excluídos. O texto desse autor mineiro, radicado no Estado de São Paulo, é claro, objetivo, enxuto, direto como um soco no estômago vazio das gentes. Não há gorduras nas pequenas narrativas que nos despertam a vontade de dinamitar Manhattan e de nos solidarizarmos com todos esses tristes seres humanos famintos. Qual o tamanho de sua fome?
Comprem o livro, prestigiem a literatura contemporânea brasileira. Bom apetite!
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as fomes inaugurais, Whisner Fraga
Editora Sinete, 2024
Para comprar: editorasinete.com.br
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Leonardo Almeida Filho nasceu em 1960 na cidade de Campina Grande. Professor universitário, escritor e ensaísta, reside em Brasília desde 1962. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília, publicou, em 2008, Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB), Babelical (Patuá); Nebulosa fauna e outras histórias perversas (e-galaxia), Nessa boca que te beija (Patuá) e Grande Mar Oceano (Gato Bravo/Portugal).
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