Palavras para dias de chuva [& para outros dias também]


Acaba de ser lançado pela novíssima Editora Sinete o livro de poesias “Palavras para dias de chuva”, da autoria do escritor, desenhista e compositor paulistano Rodrigo Scott. A obra em formato de bolso, 12 x 18cm é divida em cinco blocos temáticos, todos precedidos de breves epígrafes. Um livro de reduzida extensão é certo (88 páginas), mas que apresenta peculiaridades que a tornam maior pelas implicações decorrentes da leitura atenta dos poemas. A começar pelas belas ilustrações produzidas pelo autor e que, em boa medida, se entrelaçam às temáticas abordadas. Outro ponto que merece destaque é o próprio título do livro. “Palavras para dias de chuva”, que remete a certo sentimento de que tais dias são mais propensos à reflexão porque despertam saudade, nostalgia, e  proporcionam momentos de tranquilidade e reflexão. Entretanto, Rodrigo Scott vai mais além.   

Em nota introdutória, o autor pontua que os poemas foram agrupados em temas que se relacionam. “Na parte 1, por exemplo, há uma série de poemas que provocam a ideia de cadência cronológica; o entardecer, o advento da noite, a madrugada e o despertar”. Esse ‘despertar’ a que o autor se refere, não é apenas o despertar do sono, mas o desabrochar de percepções, sobretudo aquelas que obliteram nossa consciência no mundo atual. O medo que nos assola por exemplo.

Poema Vitória (p.21).

A noite escura e o silêncio / despertam espectros travessos do medo.
E a sombra da samambaia, tanto já vista, / transforma-se em sombra sinistra.
Os seres que dormem de dia, revigorados, / acordam nessa quieta e escura noite.
Dançam ao redor do ventre, / cantam aos ouvidos latentes / e riem-se da confusão.
Então, evoco a razão, com seu escudo dourado.
Invoco o anjo, com sua tez prateada.
E a batalha se estende pela sala , / pelo quarto, na casa, ao redor.
Essa batalha está dentro
E eu já sei como termina.

‘Medo’. Uma palavra que se repete em vários outros poemas. Por que a sensação de medo embaraça nossa liberdade de pensar criticamente? Como ele leva as pessoas a se isolarem dos seus semelhantes, favorecendo inclusive, e em larga medida, o surgimento de regimes autoritários? É sentimento que torna as pessoas inseguras e inertes quanto às mudanças reais e radicais de que necessitamos.   Esses os “espectros travessos do medo” que nos assolam em nossos dias nublados de copiosas chuvas éticas, de invernosos e desumanos dias. Adiante: 

Poema Autômatos (p. 34).

Quando aterrissamos por essas paragens, / não tínhamos ideia da tarefa a ser desempenhada.
Nos saudaram com um crucifixo cravado no coração / e uma estrelinha de aluno exemplar tatuada no / cérebro.
Nos moldaram à imagem e semelhança do sistema / e nos tornamos desejosos da vontade alheia.
Quando aterrissamos por essas paragens, / vivemos livres como autômatos, cuja poética é repetir  sempre / o mesmo, contínuo, preciso, / necessário e indubitável movimento.

O espírito de rebanho ventilado no poema acima, nos alerta para o comportamento coletivo onde indivíduos seguem a maioria sem questionar, muitas vezes por medo de exclusão, ou pela ilusão de segurança. Isso ocorre em decisões sociais, políticas e até econômicas, levando à conformidade e à repetição de ações sem a menor reflexão crítica. Um verdadeiro condicionamento. Vivemos verdadeiramente um tempo difícil no qual muitos de nós têm medo de defender o óbvio por simples medo (olha o medo novamente), de serem ‘cancelados’ ou taxados de intransigentes. Daí vamos à costumeira omissão, a covardia silenciosa. Está certo Espinoza quando afirmou que “o medo é o afeto que mais facilmente subjuga a razão”. Chegamos à triste conclusão de que, quando o óbvio precisa ser explicado, o irracional já vem prevalecendo sob a égide de um hedonismo cognitivo que confunde ceticismo com ignorância ativa. Não buscamos mais a verdade, buscamos o conforto. Isso leva àquilo a que Hannah Arendt advertiu. Embarcamos na tempestade da banalização do mal, de fazer parte de absurdos, sem sequer nos darmos conta. Somos levados pela enxurrada  dos discursos vazios, e pior; tudo se relativiza num alinhamento tribal medonho. O sentido do que é “óbvio” passa a ser campo fértil de manipulação, servidão voluntária, e histeria. Assim mesmo, nessa ordem. Eis o mal-estar num mundo de solidão existencial, desigualdade, preconceito, intolerância e falta de empatia. O mal-estar geral nos empurra para a paráfrase de Manuel Bandeira:  “vou-me embora pra Passárgada, / lá não conheço ninguém.”

Poema Sala de estar (p.48).

Na sala de estar, eu sou aquele que não se / encontra.
Aquele que busca o vazio dos pensamentos como / uma ideia fixa.
Aquele cujo torpor do corpo enterrado no sofá / quer brotar algo maior.
Há um silêncio profundo no entardecer.
Um silêncio de quase morte.
Uma sombra incógnita vem afagar meus cabelos.
Na sala de estar, eu sou aquele que não se / encontra.
Deveria ter deixado uma fresta da janela aberta / para o vento soprar seus segredos.
Deveria ter deixado essa fresta aberta em mim.

Certa melancolia está presente em alguns textos, bem como os questionamentos existenciais. “Temas que caberiam perfeitamente na escola simbolista” nos adverte ainda o autor, em nota introdutória. Mas se os simbolistas de fins de século XIX buscavam a oposição ao racionalismo, ao materialismo e ao cientificismo, via de regra, distanciados de questões sociais, é impensável hoje uma tal atitude, visto que o ‘leite já derramou’, e estamos a viver nesse verdadeiro hospício a céu aberto. Permanece todavia, e com que força, no autor paulistano a valorização do inconsciente e do consciente humano. Mas há também... 

A esperança (p.58).

A esperança não vem do céu.
Vem das gotas de orvalho / que cintilam em nosso interior a cada / amanhecer.
Pequenas moléculas de um prana sutil, / sobreposto em verniz brilhante no coração.
Amar a gota até sublimar / e suar outra no lugar.
Chover, verter dessa nuvem carregada / a dádiva da grama molhada.
Cair, infiltrar, brotar, escorrer e evaporar.
É o ciclo da esperança atávica.
Mas ela não vem do céu, / vem das gotas de orvalho / que cintilam em nosso em nosso interior, / por toda a eternidade. 

A poesia de Rodrigo tem o poder de nos recordar um pequeno detalhe da natureza: em dias chuvosos, o arco-íris aparece com todo seu esplendor, sussurrando que dias melhores hão de vir. Ser feliz exige consciência, exige  transformação, exige coragem.  

Poema Nova tela (p.78).

Quando me libertar do casulo, / onde a matéria densa é senhora, / e desfigurar a carne imolada, apodrecida, / voarei livre ao desconhecido, / onde os átomos primordiais, / portadores das múltiplas experiências, / pincelarão o éter com novos matizes, / para que renasça uma nova tela.

Ao fim dessa pequena grande obra, que cabe numa bolsa, perdura  no leitor  um sentimento de “quero mais”, sinal que o autor feriu a tecla certa. Aguardamos portanto, e com expectativa, novas produções do senhor Scott.

---

Palavras para dias de chuva, poesia de Rodrigo Scott. São Paulo: Editora Sinete, 2025.

Link para compra e pronto envio: editorasinete.com.br/palavras-para-dias-de-chuva

---

Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema, À flor da pele – Contos e Destinos que se cruzam - Romance. Participou de 30 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.  

Comentários